sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Na seara do direito, ultimamente, muitas críticas têm sido feitas sobre a metodologia do legalismo e formalismo na interpretação dos fatos em face das normas escritas, o que se denomina, em síntese, de interpretação lógico-formal. Legalismo e interpretação gramatical/textual da letra lei se confundem. O legalismo parte da premissa de que o texto da lei traz uma verdade absoluta sobre o valor que o legislador pretendeu tutelar. A interpretação deve ser dada estritamente a partir do que está escrito no texto da lei, sem qualquer contribuição valorativa/axiológica por parte do intérprete. Vale o que está escrito na lei. A origem dessa ideia está em Montesquieu, quando defendia que o juiz era a boca da lei (la bouche de la loi), cuja tarefa em suas decisões era a repetição dos termos da lei.

Modernamente, conquanto no nosso caso, em face do princípio da legalidade, o texto da lei seja o ponto de partida para a sua interpretação, a prática interpretativa das normas tem apontado outro caminho. O passo inicial do intérprete neste novo viés é confrontar o texto da lei com a norma suprema que é a Constituição, na busca de sua compatibilização, em especial no que se refere à parte valorativa. O passo seguinte é a realização da justiça do caso concreto. Por isso, é importante se ter em mente que o direito só tem razão de ser na medida em que der encaminhamento justo às questões que surgem no dia-a-dia das pessoas.O que me chamou a atenção para abordar o presente tema foi o lamentável erro judiciário praticado pela justiça paulista no caso envolvendo o ex-guarda civil paulista Mauro Henrique Queiroz, amplamente divulgado pela imprensa nos últimos dias. Um caso típico de legalismo, de interpretação lógico-formal das normas jurídicas, com drásticas e irreparáveis consequências a uma família, ou, se quiser, à dignidade humana.

O que ocorreu, em síntese, foi o seguinte: em 1957, o ex-guarda Mauro foi acusado de ter, no interior de um ônibus urbano da cidade de São Paulo, esfregado, de propósito, o seu pênis no braço de uma jovem de onze anos de idade. Detalhe: ele estava em pé e a menina sentada, tendo ao seu lado dois policiais da antiga força pública, hoje polícia militar, mas que nada viram.Em 1959, o juiz, analisando a prova (testemunha de um senhor e da própria vitima), absolveu o réu, à época, com 29 anos, sob o argumento que do contrário estar-se-ia a “praticar grave erro judiciário” (folha de S. Paulo, 15.11.09, C8).

Em face de recurso do Ministério Público, no mesmo ano (1959), o Tribunal de Justiça de S. Paulo reformou a sentença do juiz e condenou o então guarda civil Mauro a seis anos de prisão, o que o levou a perda do cargo e da farda por indignidade à função.

Mauro, vítima de câncer, no final da década de 90, veio a óbito. Porém, meses antes de falecer, chamou o filho Amauri, com pouco mais de 40 anos de idade e revelou a ele que não se importava pela morte, mas sim pelo esclarecimento da injustiça que lhe foi feita, segredo que o guardava por cerca de 40 anos. O filho, o que era de se esperar, prometeu ao pai que iria lutar com todas as forças, na busca de prova da sua inocência.

Decorridos sete anos da morte de Mauro, a sua família conseguiu localizar a “vítima” Sônia Brasil, atualmente com 64 anos, que confirmou, inclusive perante a Justiça, que Mauro era inocente e que tudo não passou de uma farsa que teve a participação da sua avó, que, na época, a acompanhava, o que comprovou o erro judicial que o juiz que procedeu ao primeiro julgamento tentou evitar.

Entretanto, a Justiça paulista, uma vez provocada para corrigir a injustiça, não a reconheceu e consequentemente manteve a condenação de 1959, não obstante o quadro reproduzido pela personagem principal e o reconhecimento da inexistência do fato atribuído ao ex-guarda civil Mauro pelo Procurador de Justiça do Ministério Público paulista. Isso, de fato, reforça a idéia de que “errar é humano, persistir no erro é ...”Esse quadro dimensiona com precisão a cultura legalista e formalista ainda existente nos nossos tribunais, e o que é pior, como no caso aqui relatado, com profundos reflexos sobre uma família que não vê a hora de lavar a honra do marido e do pai acusado e condenado por um crime que não cometera.

Agora, só resta esperar que o STJ ou até mesmo o STF, que certamente, um ou o outro, vai ser provocado, faça a justiça que todos esperam, reconhecendo o erro judiciário, para que a família, ainda que tardiamente, possa se ver compensada patrimonial e moralmente, mesmo que isso não seja suficiente para reparar a sequela que o erro lhe causou irreversivelmente.

O formalismo da justiça paulista em relação ao fato acima faz lembrar o caso de uma vítima de homicídio que não havia morrido e que foi relatado ao juiz por um jornalista. O juiz, entretanto, disse ao informante que nada poderia fazer já que havia nos autos uma certidão de óbito indicando a morte e que o julgamento teria que ser realizado porque estava marcado. Diante da intransigência do juiz, o jornalista indagou “e se eu trouxer a vítima amanhã antes do início do julgamento?”. E o juiz lhe respondeu: “nada posso fazer porque a prova não foi juntada com 48 horas de antecedência!”.

Fonte: ROBALDO, José Carlos de Oliveira. O Viés Negativo do Legalismo. Disponível em http://www.lfg.com.br - 19 de novembro de 2009.

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